Nos anos de 1920, quem tinha a “vida fácil”: a dama ou a
mulher-dama? Nos lares distintos daquela época, o dono da casa se dirigia à sua
esposa, geralmente, dando-lhe ordens, desfiando um rosário de obrigações. As
damas, por sua vez, respondiam com “Sim, senhor meu marido”, “Como o senhor
desejar, senhor meu marido”. Nos cabarés, todos se divertiam; nas casas de
tolerância, tolerava-se de tudo. Ali era lugar de alegria, de contentamento.
As mulheres-damas, se não eram tratadas com o respeito, tinham a
liberdade de sorrir, de dançar, de escolher com quem se deitar; podiam se dar
ao luxo de sentir prazer. Não tinham que obedecer a um: [“_Prepare-se e espere
por mim no quarto, que hoje eu vou lhe usar!”]. Se assim desejassem, poderiam
ler o livro que quisessem. Enquanto que as moças de família raramente podiam
estudar. Estudar poderia aludir ideias nas mentes das moças, levá-las a cometer
ousadias, pensar como homem.
Ao homem cabia conjugar bem o verbo MANTER. Os ricos mantinham
suas famílias – as legítimas e as tantas outras alhures espalhadas. Mantinham
sua moral “ilibada”; mantinham sua postura firme, merecedores de obediência;
mantinham o direito sobre as mulheres; mantinham suas “teúdas” e “manteúdas”; e
mantinham sua fama de poderosos, coronéis sem patente. Os pobres, mesmo sem um
tostão furado no bolso, mantinham sua rigidez no trato, herdada de seus pais;
mantinham suas famílias, as de conhecimento público e as demais.
As moças de “vida fácil” não podiam circular entre as senhoras,
mas, em seu território, caminhavam com a liberdade de quem pode desfrutar
alegrias, viver fantasias, se encantar com a companhia dos seus escolhidos. Até
podiam sonhar com amores impossíveis. Às senhoras, impossível, mesmo, era amar.
Esquecendo-se de quem fora Maria Madalena, a igreja negava a fé
das “rameiras”, preconizava que ali não era lugar de mulher-dama. Era um acinte
às damas da sociedade. Estas debulhavam o terço em seguidas novenas, mas
negavam o mandamento – amai ao próximo como a ti mesmo.
Casamento de “quenga” era um sonho; para as damas da sociedade,
muitas vezes era um pesadelo. Enquanto as primeiras sonhavam encontrar alguém
que as levasse ao altar, as segundas já nasciam comprometidas com casamentos
arranjados, até mesmo por famílias que mal tinham um lote de terra como dote.
Umas sonhavam com um homem que lhe desse amor, um lar, filhos e prazer. Outras
sabiam que teriam uma casa, uma família, obrigações. Amor era artigo de luxo;
prazer, coisa de mulher-dama.
Enquanto as mulheres-damas abriam os olhos e o sorriso para
escolher seus parceiros, seus “chamegos” preferidos, as damas fechavam os olhos
e o coração às afrontas do marido, aos seus casos, às suas “teúdas” e
“manteúdas”. Guardadas as devidas proporções, no fundo, uma ambicionava viver a
vida da outra. Guardadas as devidas proporções, ainda há muitas personagens
reais daquela época vivendo nos dias atuais.
Voltando à pergunta inicial: a quem pertencia a “vida fácil”? Tal
qual o texto de um poeta, a resposta vai depender do olhar que se dá à leitura;
a resposta vai depender do sentimento que se propõe a experimentar o lugar do
outro; a resposta pode depender do que se tenha vivido; a resposta... vai
depender do sentido que a ela se queira dar.
Ao longo da história, muitas foram as repostas. Houve mulher-dama
se tornando dama da sociedade e senhoras distintas abrindo cabarés. Houve
mulher-dama se tornando imperatriz. Houve que não quis um lado nem o outro: as
chamadas revolucionárias. Muitas pagaram caro por sua ousadia, outras tiveram
sucesso em suas empreitadas, mas todas fizeram história e deixaram marcas em
sua trajetória. As fictícias e as reais. Seja na pele de Frinéia, Teodora,
Apollonie Sabatier, Marie Duplessis, Tina Tati, Madame France, as Tietas e
Marias Machadão de Jorge Amado; seja na pele de Chiquinha Gonzaga, Olga
Benário, Anita Malfatti, Pagu, Guiomar Novaes, Yolanda Penteado, Maysa, Simone de Beauvoir... Sempre
haverá alguém para gritar ousadias, quebrar as regras, para ditar novos
padrões. Às mulheres de hoje, cabe reverenciá-las e, inspirada nelas, seguir
suas próprias revoluções.
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