... e a menina que mora em mim
No meu tempo de criança, não dispúnhamos de tanta
tecnologia, os nossos brinquedos eram muitas vezes por nós mesmos construídos.
Nossas pipas, nossos carrinhos de madeira, nossos patinetes, nossas bonecas de
pano, nossas bolas e barquinhos de papel. Brincávamos e cultivávamos nosso
jeito moleque, às vezes arteiro, mas sempre carregado de inocência. As
competições eram os jogos com bolas-de-gude, virar figurinhas (o velho bafo),
jogar pião; jogávamos dominó, ludo, tabuleiro de damas; fazíamos jogos de
vocabulários, como o famoso “nome, lugar, objeto...”; brincávamos de
barra-bandeira, seu rei mandou dizer e pique-esconde. Também fazíamos nossas
artes, é verdade. Quem nunca tocou uma cigarra e correu léguas para não ser
descoberto? Quem nunca roubou uma fruta do quintal do vizinho? Quem nunca
chutou uma lata enquanto alcançava o caminho de casa? Quem nunca fugiu de um
castigo para juntar-se aos amigos nas brincadeiras de rua? No meu tempo de
criança, não tínhamos computadores, não sabíamos o que era o videogame. Nossas
bolas eram as mais simples, as nossas bonecas eram as Wanderleias, com o cabelo
de fuá. Saudade dos carrinhos de rolimã, do conjunto de panelinhas, das pipas
feitas com papel de seda e tiras de coqueiro. Na televisão, curtíamos o
programa Vila Sésamo, o Sítio do Pica-pau Amarelo, a TV Globinho... Os nossos
shoppings eram os zoológicos, os parques de bairro, os circos de lona montados
num campo de futebol de várzea, as praças das cidades, os quintais das casas de
nossos avós. Não tínhamos Ipod, Mp5, Itunes. Nossas cantigas se davam no gogó,
durante as brincadeiras de roda, nos bate-papos nas calçadas, nas festas da
escola. No meu tempo de criança, cupcake
era o bolo-de-bacia; tomávamos mais sucos e caldo de cana do que refrigerante;
ao invés de brownies, cookies e trufas, nos deliciávamos com o doce japonês, o
pirulito de caramelo no tabuleiro e o cavaquinho, que, no fundo, não tinha
gosto de nada, mas todo mundo ficava louco quando o “homem do cavaquinho”
passava. O bife com batatas, arroz e feijão da nossa mãe era mais disputado que
rodízio de pizza na promoção. No meu tempo de criança, costumávamos fazer as
refeições com a família inteira, todos sentados em volta da mesa. Respeitávamos
os mais velhos, cumprimentávamos mais as pessoas, pedíamos “a benção” aos
nossos pais, avós, tios, padrinhos... No meu tempo de criança, éramos, de fato,
criança, se preparando para a idade adulta. Hoje, as crianças se tornam
adultas antes do tempo e depois lamentam não poder mais voltar à idade da inocência.
Neste dia especial, meus versos são dedicados às crianças da nossa época, mas,
especialmente, à criança que fui e à criança que ainda sou, disfarçada numa
fantasia de mulher.
A criança que mora em mim tem
bichinhos de pelúcia, brinca de bonecas, de casinha.
A criança que mora em mim ainda é moleca
e quer roubar frutas no quintal da vizinha.
A mulher que hoje sou ainda sonha com o
brinquedo que nunca ganhou.
A mulher que me tornei ainda se
entristece pelos projetos que não conquistou.
A criança que fui queria ser uma pessoa
forte, decidida, desbravadora.
A criança que fui era sorridente, tímida,
porém tagarela e sonhadora.
A mulher que vive em mim se mostra
inocente, tem medo do silêncio e da escuridão.
A mulher que sou viveu as
dores que sua criança jamais sentiu no coração.
A criança que mora em mim anseia em
voltar um dia ao passado e viver tudo outra vez.
A criança que em mim adormece quer rever
suas molecagens e fazer tudo que não fez.
A mulher que hoje sou me pede seriedade,
firmeza e paciência exige de mim.
A mulher que me tornei levará as traquinagens de sua criança interior até o fim.
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